Observação:
Hoje é o aniversário do Cine 1895
e de uma pessoa muito especial que disse certa vez que aos 30 anos seria uma
bela balzaquiana, disso eu não tinha a menor dúvida. Em outra ocasião mencionei
que ela daria uma ótima mãe, e agora, minha amiga está grávida e certamente
fará muito bem seu novo papel. Desejo que os próximos meses sejam tranquilos e
que o bebê nasça com saúde, pois chegará com a sorte de ter alguém que irá
cuidar dele com extremo carinho e dedicação, tenho absoluta convicção que estará
em mãos esplêndidas que o transformarão numa pessoa digna em todos os sentidos.
Parabéns e sucesso nessa fase de sua vida, minha querida amiga!!! Como eu
sempre disse: “Você merece todas as felicidades do mundo”.
Em Paz na Terra, o mais famoso personagem dos quadrinhos
enfrenta o seu maior inimigo: a Humanidade.
Ainda que tenha iniciado minha
experiência no universo dos quadrinhos lendo histórias de super-heróis, não sou
fã do gênero. Com raras exceções, sempre que leio uma revista do tipo, fico com
a impressão de um material desperdiçado, embora eu seja fascinado pela
mitologia de alguns desses personagens. Superman
é um exemplo clássico, visto em geral como uma criação fantasiosa (e para
alguns até antiquada) que emite raios pelos olhos, possui força descomunal, invulnerabilidade
e voa, esse ícone da cultura pop é muito mais complexo do que aparenta. Há quem
diga que o Homem de Aço é uma analogia bíblica (o Pai que envia o Filho para a
Terra) e outros afirmam que nada mais é do que a exposição camuflada da “ideologia
norte-americana” (hipótese que discordo plenamente, pois do ponto de vista
político, o herói não apoia guerras ou medidas agressivas que priorizam a
desigualdade entre nações, muito pelo contrário), de todo modo, prefiro
analisá-lo pelo prisma dos dilemas ou do que poderiam ser suas grandes dúvidas
existenciais.
Enxergo dessa forma: Único da sua
espécie (essa versão mudou com o tempo, ele ficou sendo um dos últimos do planeta Krypton),
ele foi encontrado e criado pelo casal Kent que lhe deu um nome, Clark jamais
pôde ser uma criança normal brincando com as outras por motivos óbvios, ele
poderia num simples movimento machucar gravemente alguém; nunca praticou
esportes não só pelos riscos com relação ao contato físico, mas também por
questões éticas (seria fácil vencer os oponentes com seus poderes); aprendeu
que não poderia se envolver em brigas ou chamar atenção exacerbada para sua
pessoa, ser coadjuvante não era uma opção, e sim, uma necessidade; o termo bullying (tão em voga ultimamente)
poderia ser aplicado aqui, o herói sempre foi um alvo fácil por ser diferente,
ter poucos amigos e manter segredos; perguntas como “Quem eu sou?” ou “O que devo
ser?” comuns a qualquer jovem, assumiam dimensões inimagináveis; se a sua
vida era cheia de limitações, nenhuma delas era tão assustadora quanto o medo
da solidão, pois apesar de não ser imortal, Superman envelhece de forma
incrivelmente lenta (e não adoece), o que significa dizer que irá viver para
perder todas as pessoas que ama. E essa condição também fará com que Clark Kent
seja um disfarce efêmero, a aparência jovem e a longevidade tornará impossível
a permanência em um só local com a mesma identidade (já que não planeja revelar
ser o Superman, pois impossibilitaria qualquer tentativa de ter um pouco de
tranquilidade ou de possuir uma “rotina normal”), ele está condenado a ser um
nômade.
Curiosidade:
Se você acha ridículo o fato de ninguém associar Clark Kent ao Superman,
pois considera que a diferença entre eles é apenas a roupa e os óculos (admito
que também já pensei dessa forma), veja esse vídeo!
Super-Homem: Paz na Terra é uma
daquelas exceções que falei no início do texto, lançada em 1998, trata-se de
uma edição comemorativa por conta dos 60 anos do personagem (a primeira
aparição ocorreu na Action Comics em
junho de 1938), escrita por Paul Dini e desenhada por Alex Ross, a revista parte
de uma premissa inusitada: O que
aconteceria se o Homem de Aço decidisse acabar com a fome no mundo?
Do que adianta uma boa intenção?
Logo na abertura, a obra faz uma bela
homenagem aos criadores do personagem, texto e arte remetem à primeira página
feita por Jerry Siegel e Joe Shuster que é um resumo da vida, das
peculiaridades e da essência altruísta do herói. Contudo, os autores vão além
da referência, já no início estabelecem o tom introspectivo da história que é
narrada pelo próprio Superman, os quadrinhos introdutórios escapam da mera
síntese e assumem a condição das memórias do personagem. Dini destaca o papel das
experiências na formação moral, gradativamente saímos do extraordinário para
aspectos palpáveis a qualquer pessoa, por exemplo, a amizade entre pai e filho
que aqui ganha uma dimensão fundamental, pois é ideia consolidada no universo
das HQs de que tenha sido Jonathan Kent – um homem de extrema retidão e senso de
justiça – o responsável por moldar o caráter do filho adotivo. Mencionando tal
relação como uma das lembranças mais vívidas de Clark, o escritor humaniza o personagem
e cria um vínculo com o leitor que passará a aceitar com maior naturalidade o
enredo e o protagonista. Esse conceito encontra respaldo na maneira como Ross
ilustra os quadros, utilizando um sépia que denota as reminiscências, o
desenhista acrescenta raios que iluminam as figuras como se desejasse
explicitar que aquelas cenas são cheias de calor humano. Para os aficionados é
possível dizer que existe um simbolismo ainda maior, basta lembrar que as
qualidades excepcionais do Super-Homem são oriundas do Sol amarelo que afeta
diretamente sua fisiologia (em Krypton, o Sol era vermelho e os habitantes
normais), então, os raios incidindo sobre imagens ressaltando a trajetória, os ensinamentos
e o contato familiar teriam significado condizente com o restante da trama: o maior de todos os poderes é o aprendizado.
Assumindo claramente o formato de
fábula, Paz na Terra é desde o início
uma grande lição de moral, a história começa durante as festividades natalinas
quando o Super-Homem tradicionalmente prepara uma gigantesca árvore que abre oficialmente
as comemorações (qualquer semelhança com a famosa árvore do Rockefeller Center não é mera
coincidência, Metrópolis é inspirada
em New York), mas desta vez algo de diferente acontece, ele identifica no meio
da multidão uma garota quase desmaiada, rapidamente a coloca nos braços e
percebe que aquilo é um caso de desnutrição. Esse é o estopim para uma crise de
consciência que poderia ser definida pela pergunta: O que de fato tenho feito para ajudar o mundo? Uma reflexão com
censuras ao nosso comportamento e indiferença social, somos tachados pelo herói
como materialistas, mesquinhos e cheios de necessidades supérfluas, ele chega
até a citar uma frase de Charles Dickens que afirma o quanto tornamos falsa a
mensagem natalina, aliás, o escritor inglês é responsável pelo clássico Um Conto de Natal, mas ao contrário daquela
obra em que o egoísmo era concentrado no protagonista (que representava muitos
de nós), aqui todos somos abertamente um pouco do velho Scrooge.
Apesar do senso crítico apurado, Superman
é um idealista, pensa que um bom exemplo é capaz de mudar o rumo das coisas, o
pensamento pessimista cede espaço para a crença de que também somos dotados de
generosidade, afinal de contas, que destino ele teria tido se não fosse a
bondade dos Kent? Por isso, ao invés de usar sua força para dominar o planeta, o
herói segue os ensinamentos dos pais adotivos, ajudar o próximo é uma maneira
de oferecer algum sentido a sua existência.
O
Veredicto: Superman vai ao Congresso dos
EUA como embaixador de uma causa
nobre.
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Embora não saiba como é estar com fome (seu metabolismo não necessita de alimentos), isso não o impede de sentir pena das pessoas que enfrentam essa terrível mazela. Fazendo alusão ao Bom Velhinho, Superman decide voar pelo globo usando apenas um dia para distribuir o presente que julga mais útil. Acreditando que sua ação irá desencadear uma campanha solidária, o Homem de Aço parte do princípio que existe comida suficiente para alimentar toda a população mundial, dessa forma, resolve ir ao Congresso americano para discutir o assunto. Percebendo que as medidas oficiais nada mais são do que promessas cheias de entraves, ele apresenta soluções alternativas, nas palavras do protagonista: “A América produz mais comida do que consome, mas não cria os meios para transportá-la até os famintos”. Tudo que ele precisa é de uma autorização para fazer esse transporte.
De modo a não restringir os
obstáculos da tarefa, Paul Dini toma a decisão de excluir vilões tradicionais
como Brainiac, Apocalipse, Darkseid, Bizarro, General Zod e o arqui-inimigo Lex
Luthor (pessoalmente, o encaro como uma síntese do poder nocivo das megacorporações),
o mesmo pode ser dito sobre o fato de não incluir personagens como Perry White,
Lois Lane ou Jimmy Olsen que poderiam desviar a atenção para análises
secundárias. Nessa parte da narrativa, nenhum indivíduo é identificado pelo
nome, o que serve para caracterizar a homogeneidade da culpa, pois na visão dos
autores, um ditador que oprime seu povo ou o sujeito que se mostra indiferente
ao sofrimento alheio, eles fazem parte do mesmo cenário e das suas consequências
globais.
Antes que alguém diga que o governo
americano é retratado de forma benevolente, o sinal verde dado ao protagonista
apenas revela a burocracia e inércia dos Estados Unidos diante de problemas que
estão além de suas fronteiras e pelos quais muitas vezes tem uma parcela de
responsabilidade, sem mencionar que a revista ainda acusa o país de uma péssima
distribuição de renda, a imprensa de sensacionalismo e a população de consumista,
voltada ao desperdício e desconfiada de boas atitudes. Em resumo, são essas
características que definem a mensagem principal da HQ, assumindo
particularidades em cada lugar que o personagem for, a ideia que prevalece é a
de que as pessoas estão mais preocupadas consigo mesmas e são incapazes de sair
de sua zona de conforto, há uma descrença generalizada no próximo e quase tudo
é visto com segundas intenções.
ATENÇÃO: Não passe desse ponto se você ainda
não leu a revista. Abaixo, analiso alguns aspectos cruciais da narrativa.
O roteiro ao não isentar ninguém,
evita cair na armadilha de fazer uma divisão entre mocinhos e bandidos que
enfraqueceria a relevância da mensagem. Adotando um arco dramático crescente, a
jornada do personagem se inicia de forma otimista e aos poucos percebemos o
quanto ele subestimou as possíveis ameaças, muito mais pela vontade de
acreditar que somos capazes de mudar do que por ingenuidade, ele mesmo se
questiona: “Será mesmo que achei que
daria certo? Sabendo o que sei da natureza humana, por que acreditaria que
todos aceitariam de boa vontade o que eu tinha a oferecer?”
E o principal objetivo da obra é
discutir nossa visão míope diante de um assunto que geralmente é analisado de
forma simplória. A fome não é apenas uma questão de distribuição, de crises
financeiras, desastres naturais ou má vontade política, mas é um elemento eficaz
na manutenção de pessoas no poder que a utilizam como ferramenta de submissão
das massas, sendo que a moeda de troca para amenizá-la são votos, mão-de-obra
barata, além de ser uma semente que incita o ódio e inicia guerras que como
sabemos são negócios lucrativos para determinados grupos (e nações). Reduzir o
homem à condição de somente lutar para suprir uma necessidade orgânica, é
rebaixá-lo a um patamar primitivo, já que o ser humano tem “fome” de várias coisas.
É uma violência institucionaliza em nível físico e psicológico que acaba
vitimando uma geração após a outra, exterminando a dignidade e roubando a identidade
de um povo.
Entretanto, mais triste ainda é
constatar que as relações em um mundo globalizado são afetadas por
“ingredientes” (tradições, cultura e religiões) que deveriam motivar o orgulho pela
diversidade e servir como partilha, e acabam se transformando em armas que distanciam
e aumentam rivalidades históricas em um jogo de interesses. São barreiras
intransponíveis que tornam a missão do Superman em algo utópico, e pior, a
atitude é encarada como invasiva e desrespeitosa. Que fique claro que sua
“intromissão” nada tem a ver com política ou economia que geralmente são a
justificativa disfarçada de governos e organizações internacionais para intervir
em assuntos alheios, a única intenção do protagonista é promover uma mudança de
pensamento. Infelizmente, é esse aspecto que oferece tragédia e ironia ao
enredo, pois o que existe de mais ficcional na história não é o fato do
personagem principal ser alguém que voa e solta raios pelos olhos, e sim, a fé
que ele deposita em nós e a esperança de que poderíamos entender sua mensagem.
O alienígena é o mais humano de todos e quem melhor compreende o valor da
vida.
Nesse sentido, o trabalho do
desenhista Alex Ross é excepcional. Primeiro ao conferir realismo as imagens de
tal maneira que possamos nos identificar mais facilmente, já que um desenho
estilizado ou abstrato poderia sabotar as intenções emocionais da história, ao
invés disso, resolve mostrar com detalhes as expressões e até as rugas nas
figuras, evitando uma plastificação dos rostos que ofereceria artificialidade.
Novamente, a decisão de excluir vilões conhecidos com seus visuais
espalhafatosos ajuda bastante na intencionalidade de abordar o real. O mesmo
pode ser dito sobre o uso dos demais objetos e dos ambientes que parecem ter
uma textura, as cenas na grande maioria das vezes possui um interessante
trabalho de profundidade de campo. O próprio Superman não escapa desse objetivo,
a sua anatomia e a sugestão de movimentos são cuidadosamente estudados para que
possam soar mais naturais, no entanto, há um zelo em não desfigurar as posições
emblemáticas que são retratadas aqui de maneira muito elegante, afinal, é uma
obra que homenageia a própria trajetória do herói e faz referências aos artistas
que consolidaram o personagem.
Também é válido destacar que a
disposição dos quadrinhos difere a cada página, assumindo um formato pouco
convencional que exclui algumas vezes as linhas divisórias do quadro a quadro,
elimina os balões de fala, abre “janelas” no canto de páginas e coloca imagens
sobrepostas que enfatizam detalhes que dão ritmo as transições e dinamismo à
leitura. E até mesmo quando surgem gravuras amplas e contemplativas, elas são adequadas
ao texto de Paul Dini que é pautado em reflexões que exigem em certos instantes
uma pausa para que o leitor possa pensar sobre o assunto, e principalmente,
senti-lo sem parecer melodramático.
Mas a arte de Ross vai além desses
quesitos, tornando-se fundamental ao estabelecer a atmosfera da trama e o
estado psicológico do protagonista que é também o narrador, portanto, o ótimo
uso de cores e escalas oferece sentido à percepção do herói, configurando
simbolismo ao enredo. Perceba como os autores invertem nossas expectativas já
no início quando as festividades natalinas não representam alegria, e sim, um
período de incoerências. A neve que cai, apenas ressalta uma paleta de cores
tristes que pinta a cidade e que ilustra os pensamentos melancólicos do
personagem principal, e mesmo quando surgem outras tonalidades, elas são sempre
apagadas. Em determinado momento quando grupos de pessoas aparecem rindo, o uso
quase monocromático ou às vezes a dessaturação da paleta deixa evidente o
intuito de estabelecer aquilo como algo sem graça, ainda mais se considerarmos que
a montagem dos quadrinhos faz uso de cenas opositivas focadas em uma pergunta: “Como é possível ignorar o sofrimento alheio?”
Conforme a narrativa avança, notamos
que as cores do Superman tornam-se mais vivas, exemplificando a mudança do seu
estado de espírito. Ele aparece imponente em imagens que consomem páginas
inteiras, sempre com o semblante iluminado, o que representa sua esperança em
inspirar outros a seguir seu exemplo. Todavia, os elementos ao seu redor
continuam com uma coloração fraca como se deixasse claro que o personagem não
está querendo enxergar o óbvio. À medida que o tempo passa, o herói vai mudando
sua percepção quando ele deixa de olhar o indivíduo
(as imagens mostravam fisionomias detalhadas, significando que cada pessoa tem
importância) para ver apenas a massa homogênea
onde não importa quem é quem (as figuras são vistas embaçadas e sem rosto, em
resumo, todos estão condenados), culminando no ponto em que ele mesmo é
mostrado borrado, pequeno, insignificante e derrotado, confrontando a ideia
antes exposta de um “Deus” que chega dos céus com a solução.
Deuses Vencidos: Atingido por mísseis, Super-Homem lamenta a comida que foi envenenada e transformada em cinzas. |
A DC Comics jamais
permitiria que a HQ comemorativa dos 60 anos do Homem de Aço tivesse um fim tão
melancólico, e de fato seria um erro por contrapor a natureza do personagem que
é baseada em nunca desistir. Contudo, Paul Dini e Alex Ross (ambos são
responsáveis pelo o argumento do texto) compreendem que um final plenamente
feliz seria cair em um equívoco semelhante. Por isso, eles concluem a revista
retomando os ensinamentos de Jonathan Kent, o que torna genial a estruturação
do roteiro ao criar uma delicada e singela metáfora que de certa forma faz uma
ponte entre o passado, o presente e o futuro da humanidade. Como disse Benjamin
Franklin: “É possível que o ser humano
viva sozinho, mas não creio que isso seja Felicidade”. O protagonista compreende que mudanças não podem ser abruptas e
que leva tempo para a transformação da consciência, sendo que tanto Clark Kent
como o Superman possuem um valor igual no processo de redenção.
Desistir não é o caminho como
ensinou Christopher Reeve, o homem
que vestiu em quatro oportunidades a capa vermelha.
Enquanto
isso...
De acordo com a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO),
cerca de 925 milhões de pessoas sofrem com a fome ao redor do planeta. Enquanto
isso, países como os Estados Unidos, China e Rússia anunciam orçamentos
exorbitantes para o setor de armas nucleares, o relatório British American Security Information Council (Basic) diz que só os
americanos gastarão 700 bilhões de dólares na próxima década. Estima-se que a
Guerra no Iraque tenha custado (somados os impactos à economia) 3 trilhões de
dólares aos cofres norte-americanos, sem esquecer os milhares de soldados
mortos e feridos das tropas de coalizão. A ONG Iraq Body Count (IBC) com sede na Grã-Bretanha, afirma que aproximadamente
100 mil iraquianos perderam suas vidas durante o conflito (outras pesquisas
apontam números ainda mais elevados).